O desejo que se expandia no
coração do oficial da Marinha não tinha uma forma definida. Apesar disso,
quando criança, ele se olhava no espelho e via, no rosto masculinizado, um
conjunto de ângulos retos como os cantos da moldura. Entrou para as Forças
Armadas, fez polo aquático, casou, teve um filho, mas, no meio do caminho, já
adulto, a vontade de ser mulher foi preenchendo-o lentamente, como num
exercício de caligrafia. Dos hormônios e das operações (inclusive a de mudança
de sexo em 2010), surgiu Bianca, de curvas acentuadas pelo corpo.
Faz três semanas, Bianca
aguardava a chegada de seus ex-comandantes da Marinha, para uma audiência no
corredor do 8andar de um prédio da Justiça Federal. Era um dia de calor
intenso, e ela estava com óculos escuros, uma saia preta e uma blusa aberta nas
costas e nos ombros.
No lugar de medalhas,
ostentava “heroicamente” 300 mililitros de silicone em cada peito; tinha
próteses nas panturrilhas; o nariz estava menos abatatado; o lábio superior
fora levemente repuxado; e os cabelos lisos, caprichosamente esculpidos numa
longa sessão de cabeleireiro no dia anterior. O aroma adocicado do seu Florata
in Gold em nada lembrava o cheiro do marinheiro desbravando os mares.
Quando saiu do elevador
devidamente fardado e avistou o ex-subordinado, o diretor de Saúde na Marinha,
o vice-almirante Edson Baltar, não conseguiu disfarçar a surpresa, como se
dissesse: “É você?”
A audiência foi a primeira
do processo que a capitão, de 40 anos, move contra a Força à qual serviu desde
os 15 anos. Em 2008, ao procurar seus comandantes e avisar que estava tomando
hormônios femininos havia um ano, Bianca foi pivô de um escândalo de deixar o
Almirante Tamandaré remexendo-se no túmulo. Em dois meses, foi reformada com
vencimentos reduzidos. Às pressas. A Marinha a considerou capaz para trabalhar,
mas incapaz para continuar em suas funções na Escola Naval. Nos tribunais,
Bianca busca indenização e soldos integrais.
— A incapacidade de voltar
à carreira militar é da Marinha em me receber e não minha de retornar — diz
ela.
Olhares desconfiados Na
véspera da audiência, a ex-oficial entra num bar da Praia de São Francisco, em
Niterói, senta-se numa das mesas em que o repórter a aguardava e pede um
refrigerante light. O sol de fim de tarde ainda é forte e, ao rebater nas
folhas das palmeiras, projeta no rosto de Bianca diferentes formas geométricas.
Embora disfarcem, os garçons a observam desconfiados, a ponto de ela se
incomodar. Quase vai tirar satisfações. Em vez disso, diz, num tom profético,
como se desvendasse a mandala de luz em sua face:
—Tenho uma previsão: ainda
vou ser muito feliz.
Até 2006, o conceito de
felicidade era ser um bom marido, um pai atencioso e um comandante responsável
pela formação de 500 aspirantes na Escola Naval. Mas, naquele ano, Bianca
decidiu tornar público para os familiares uma situação que vinha se arrastando
na clandestinidade. Algumas vezes acompanhada pela ex-mulher, o oficial já
participava de concursos num badalado clube GLS. Foi Miss Gay 2006. A família
ficou horrorizada. A mãe passou a tratá-la como uma “aberração”. Pressionada
pelos parentes, a companheira — ciente há anos da situação — pediu a separação.
Os militares só saberiam dois anos depois.
A ex-mulher de Bianca
tentou, então, impedir que ela visse o filho, de 7 anos. Alegou que o garoto
poderia virar homossexual. Mas Bianca procurou a Justiça, e o juiz garantiu-lhe
todos os diretos de “pai”. Em público, o menino a chama de mãe. Parece não julgá-la.
E isso dá a certeza a Bianca de que, seja qual for a forma que ela tiver, o
coração ainda continuará sendo o vértice de tudo.
Fonte: Jornal Extra
Em ato de bravura pessoal Bianca salva a própria vida e rompe com o padrão social de gênero, abre mão do ideal coletivo de como devemos ser para viver a felicidade de ser mulher!!! Parabéns Bianca, bem vinda a sociedade! Ainda que a normativa social diga não! Nós estamos na luta pela Cidadania Igualitária onde tod@s terão seus direitos garantidos.
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